DANÇA DO CAMPO
Com o fim do Império Romano do Ocidente, não apenas o mundo antigo se desmantelava, mas também uma nova civilização estava se formando: a civilização medieval. Nesse período a igreja reinou soberanamente e controlou praticamente toda a vida social. Foi considerada na época como a única instituição em condições de limitar a violência endêmica que marcava a sociedade, em ponto normas e punições; sendo assim, ela assumiu o papel de constituir normas de conduta e modos de pensamento, impedindo qualquer manifestação que contrariasse sua doutrina. O clero(1) lutou para eliminar os costumes pagãos que se chocavam com a moralidade cristã. Entre os pecados condenados e sujeitos a severas penitências vinham em primeiro lugar: a violência e o assassinato(2), em seguida, vinham os pecados sexuais, como: a poligamia, o concubinato e o incesto.
Segundo o clero, atividades que estimulassem a prática desses pecados deveriam ser proibidas, como por exemplo: as danças pagãs. A evangelização promovida pela igreja foi um processo lento e progressivo, que nem sempre obteve os resultados almejados. Sem poder político e força militar, a igreja não era capaz, por si mesma, de impor os valores cristãos por toda parte. As populações convertidas retornavam ao paganismo com muita facilidade. Assim, a cristianização dos povos bárbaros e da população camponesa permanência superficial insuficiente. Sendo assim, a dança foi difamada e perseguida por décadas. A igreja católica enxergava a dança como uma ferramenta de resistência para a cultura secular(3) e uma ameaça aos seus interesses no processo de catequização. O clero vendo a dança como um instrumento de conhecimento e de construção de mundo; utiliza uma produção simbólica para defender seus interesses; chamada por Ernst Cassirer de “formas simbólicas” e pelo Émile Durkheim de “formas sociais”.
O historiador Roger Chartier salienta que os “sistemas simbólicos” tendem a cumprir a função política de impor, legitimar ou assegurar a dominação de uma classe sobre outra. Logo, a classe religiosa da época usou um sistema simbólico que estava longe de ser apenas cognitivo: foi também emotivo, psicológico e valorativo. A pregação da época foi uma espécie de moldura ou linguagem que orientou os fiéis como uma bússola ou um mapa, articulando os ingredientes naturais e sociais, históricos e institucionais, configurando uma pauta, a partir da qual foi composto por meio de valores “éticos” uma difamação através do discurso que a dança era uma ferramenta de louvor ao diabo, isto é, uma inculcação social do papel sexual e profano da dança. Em suma, o clero utiliza os “sistemas simbólicos” como um meio de intimidação, medo e terror. Buscando desacreditar a dança como um despertar social.
Ressalto, que a maioria das sociedades contemporâneas estão divididas conforme o poder aquisitivo de seus membros, a classe alta tem mais condições de consumir, seguida pela classe média, depois pela classe baixa. Todavia, a sociedade feudal, por sua vez, estava dividida em camadas sociais definidas conforme o papel desempenhado por seus membros na sociedade(4). No ponto de vista econômico, contudo, a nobreza e o clero compartilhavam origem e interesses comuns, pois os dois eram proprietários de terra e dela retiravam o seu sustento. Opunham-se, nesse sentido, aos trabalhadores(5), em especial aos servos sujeitos a sustentar toda a sociedade por meio de obrigações e taxas feudais, como a corveia, a talha e as banalidades. Enfim, de acordo com a tradição e os costumes feudais, só existiam três camadas sociais distintas, eram elas: o clero, os nobres e os servos.
Enfatizo, que os servos eram marcados por obrigações, os nobres eram identificados por seus privilégios, pois eram grandes proprietários de terra, dedicavam-se a atividade militar e administrativa. Entretanto, mediante as mudanças que vinham ocorrendo na Europa desde o século XI, possibilitou uma nova camada social, a burguesia. Eles não se enquadravam mas como servos, por causa do seu poder econômico e político. Friso, que esses dois fatores até poderiam lhes adquirir títulos de nobreza, mais eram discriminados por não terem o “sangue azul”, isto é, eles eram a nobreza togada(6). Segundo Clifford James Geertz a burguesia aproveitou o surgimento do renascimento(7) (que inspirava uma nova visão de mundo, por meio da arte e do conhecimento) e criaram as condições materiais para uma formação de um mundo moderno, onde foi apresentado uma nova estrutura de camadas sociais (clero, nobre, burguês e servo).
Em suma, a burguesia utilizou as artes para propagar suas ideias, portanto, surgiu a necessidade de diferenciar as Danças do Campo, das Danças de Concerto ou Danças de Salão. Segundo o coreógrafo britânico Thomas Wilson(8), na década de 1720, o termo “Dança do Campo” é invariavelmente usado em todos os livros sobre dança que foram publicados na Inglaterra durante os séculos passados, enquanto todos os trabalhos publicados na França no mesmo período empregam o termo “Contre Danse” que em português significa Contra Dança(9). Destaco que as Danças de Salão eram apresentadas como superiores as Danças do Campo, que apesar de serem identificadas como do Campo, todavia, não eram de origem dos camponeses e sim, típicas dos proprietários de terras; ou seja, sua origem era dos suseranos, logo eram apresentadas como superiores em comparação com as Danças dos Servos, isto é, as Danças do Campo representadas pelos suseranos estavam no estágio evolutivo da barbárie, enquanto as danças populares ou ancestrais eram representadas pelos servos que estavam no estágio evolutivo da selvageria; entretanto, as Danças de Concertos ou salão estavam no estágio evolutivo da civilização. Enfim, Maria Amália Giffoni afirmou que as Danças Campestres(10) foram adaptadas aos gostos das cortes(11) a partir do século XV pela burguesia(12), exemplo: a Quadrilha era uma Dança de Salão inspirada em uma Dança do Campo de origem holandesa ou alemã, chamada de Neitherse.
Outros estudiosos sobre o assunto afirmam também que as Danças do Campo originadas nas Ilhas Britânicas, influenciaram as Danças da Corte no mesmo período e se tornaram particularmente populares por exemplo na corte de Elizabeth I da Inglaterra. Logo depois, foram introduzidas na corte de Luís XIV da França, e secundariamente na Alemanha e na Itália(13). Segundo Thomas Wilson declarou em 1808(14), uma das diferenças lineares entre elas, era a formação, pois a Dança do Campo seria composta de um número indefinido de pessoas, não menos que seis. Contudo, para a Dança da Corte, seis pessoas eram suficientes para executar qualquer figura no tratado. Enfatizo, que no começo do século XX iniciou uma crítica sistemática às teorias até então vigentes que defendiam essa existência de uma hierarquia entre culturas, visão que dava ao etnocentrismo status de ciência, segundo o antropólogo teuto-americano Franz Boas(15) (que usou a história para explicar a grande diversidade cultural na humanidade), cada sociedade tem sua história própria em vez de ser apenas uma etapa numa história universal das civilizações.
Concluindo, segundo Boas, cada cultura é o resultado de uma história particular e isso inclui também suas relações com outras culturas, as quais podem ter características bem diferentes. A concepção de uma linha de evolução única para as sociedades humanas é, pois, ingênua e insuficiente para dar conta de culturas que por longo tempo se desenvolveram fora do âmbito dessa civilização. Logo, compreendemos que não existem superioridades quando se fala de cultura, todas são importantes independente do suposto “grau de evolução” de determinada sociedade.
TEXTO ATUALIZADO - 05/12/2023.
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RODAPÉ
1- São as pessoas que trabalhavam para a igreja: os padres, as freiras, os frades e seus superiores, enfim, esse conjunto era chamado de clero, que recebe esse nome ainda hoje.
2- Outras práticas consideradas pecados, eram: mágicas, feitiçarias e adivinhações, típicas das regiões pagãs.
3- O estilo secular contém as músicas destituídas da temática religiosa. Por volta dos séculos XVIII e XIX, a Igreja Católica denominava essas músicas como profanas ou hereges pertencente a um estilo mundano. Nas definições atuais que colaboram para a continuação da História da Música, o termo Música Secular refere-se a qualquer tipo de composição musical que não tenha cunho religioso. Contudo, dentro do mercado musical às que são voltadas para religião recebem a categoria de Música Gospel (que significa em inglês “evangelho”), portanto refere-se tanto as composições católicas como protestantes. Todavia, as denominações cristãs intituladas protestantes preferem adotar o termo Gospel, para separar suas músicas das músicas católicas; contudo essa diferenciação só existe dentro dessas denominações.
4- No século XI, o Bispo Adalberón de Laon traduziu um poema sobre a visão da igreja na sociedade medieval. Segundo a religião a sociedade feudal era dividida entre: os que oravam, o clero, os que guerreavam, a nobreza, e os que trabalhavam, os camponeses.
5- No que se refere aos próprios trabalhadores, no entanto, havia diferenças entre os servos que eram camponês (livres) e os trabalhadores urbanos (comerciantes, profissionais como artesãos entre outros).
6- Havia três tipos de nobreza: a nobreza provincial – mais tradicional, descendentes dos senhores feudais que ainda mantinha os camponeses em condições civil; a nobreza togada – os membros da alta burguesia que adquiriram os títulos de nobreza mais eram discriminados por não terem o “sangue azul”; e a nobreza palaciana – que vivia de forma parasitária nos palácios, fazendo a corte para os reis.
7- Movimento cultural intenso, que começou no século XIV nas cidades italianas e posteriormente se propagou pela Europa.
8- WILSON, 1808.
9- HOWE, 1858, p. 25.
10- Movimento cultural intenso, que começou no século XIV nas cidades italianas e posteriormente se propagou pela Europa.
11- Entendemos nesse período a burguesia como sendo grandes comerciantes, profissionais como artesãos entre outros.
12- Compreendemos neste período a burguesia como sendo os agricultores, grandes comerciantes, profissionais como advogados, médicos, entre outros.
13- KIRSTEIM, 1969, p. 119.
14- WILSON, 1808.
15- Ele está entre os precursores da antropologia moderna, tornou-se conhecido como "Pai da Antropologia Americana". Foi um dos pioneiros em criticar essa visão, afirmando que toda cultura tem uma história própria, que se desenvolve de forma particular e não pode ser julgada a partir da história de outras culturas. Boas, foi a principal influência nas obras do escritor, antropólogo sociólogo e historiador pernambucano Gilberto Freire (1900/1987).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FEUILLET, Raoul Auger. Choregraphie ou L'art de decrire LA DANCE, Par Caracteres Figures Et Signes Demonstratifs. França: Ed. Francês, 1700.
HOWE, Elias. Complete Ball-room Hand Book. Inglaterra: Ed. Ditson & Co, 1858.
KIRSTEIN, Lincoln. Dance, Dance Horizons Incorporated, Nova Iorque, 1969.
WILSON, Thomas. An Analysis of Country Dancing. London: W. Calvert, 1808.
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