A CONSTRUÇÃO DE UM DISCURSO


No capítulo anterior, compreendemos que o discurso sobre uma identidade sertaneja nordestina, amplamente difundido no início do movimento artístico e cultural por meio dos programas de rádio e das canções de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas, foi construído para enaltecer os valores e a cultura do povo nordestino. Por meio de suas letras, esses artistas destacaram aspectos essenciais da vida sertaneja, como o amor à terra natal, a fé e a devoção, a resistência diante das adversidades e a forte ligação com a família. Esse conjunto de valores e narrativas, aliado à musicalidade singular do Forró, conseguiu elevar a autoestima do nordestino, promovendo um sentimento de orgulho e pertencimento, ao mesmo tempo que projetava, para o restante do país, a relevância sociocultural dessa população frequentemente marginalizada. Luiz Gonzaga e seus parceiros literários não se limitaram à exaltação da cultura nordestina, mas apresentaram um discurso de grande alcance que, indiretamente, reverberou entre os camponeses de outras regiões brasileiras. 

Ao se reconhecerem nas descrições poéticas das canções — que abordavam tanto os costumes do campo quanto as dinâmicas das relações humanas na cidade —, esses camponeses ou seus descendentes também se sentiram representados. Essa universalidade presente na narrativa de Gonzaga revela não apenas a força de sua mensagem, mas também a profundidade de seu impacto cultural, que transcendeu barreiras geográficas e sociais. Assim, o discurso de identidade sertaneja consolidado por meio da música popular nordestina urbanizada tornou-se um meio de resistência cultural e de valorização das raízes regionais, criando uma ponte entre o tradicional e o moderno, o local e o nacional.  Neste capítulo, buscaremos abordar a construção desse discurso de identidade, inicialmente criado por Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas, e posteriormente fomentado por artistas como Jackson do Pandeiro, João do Vale, Onildo Almeida, Rosil Cavalcanti, Antônio Barros, João Silva, entre outros letristas. 

A obra A Memória Coletiva, do sociólogo francês Maurice Halbwachs (1990), fornece elementos essenciais para compreender a construção de um discurso de identidade regional e de representatividade, como aquele desenvolvido por Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas. A partir dos conceitos de memória autobiográfica e memória histórica, Halbwachs demonstra como as narrativas individuais e coletivas se entrelaçam no processo de formação das identidades culturais. Segundo o autor, a memória autobiográfica está enraizada nas experiências pessoais de indivíduos ou grupos específicos, enquanto a memória histórica se refere a um acervo mais amplo e coletivo, composto por elementos transmitidos por gerações e reforçados por práticas culturais. No contexto do movimento artístico e cultural impulsionado por Gonzaga, Humberto e Zé Dantas, essa relação dialética entre memórias se torna evidente.

As composições dos três artistas extraíram elementos da memória autobiográfica de suas vivências no sertão nordestino — a aridez da terra, a força da fé, as festas populares e as relações familiares —  para transformar essas experiências em símbolos de uma memória histórica compartilhada. Por meio de suas canções, como: Asa Branca (Gonzaga; Teixeira, 1950), Baião (Gonzaga; Teixeira, 1949) e Vozes da Seca (Gonzaga; Zé Dantas, 1953), conseguiram traduzir as especificidades culturais nordestinas em uma linguagem que ressoava não apenas no Nordeste, mas em todo o Brasil. Halbwachs (1990, p. 123) argumenta que, no grupo social, o tempo se estabiliza e as imagens passageiras ganham permanência, tornando-se transmissíveis. No caso do movimento liderado por Gonzaga e seus parceiros, as canções funcionaram como catalisadores dessa estabilização, mobilizando tradições e valores do povo nordestino e projetando-os em uma narrativa acessível e identificável. 

Assim, o discurso criado por eles foi além da música: tornou-se um ponto de convergência entre memória individual e coletiva, permitindo que o sertanejo se visse representado e que o restante do país reconhecesse a relevância cultural dessa região. Isto é, eles produziram uma citação de “tradição” por meio de elementos estruturantes para a formação de uma identidade sertaneja nordestina. Por meio do elemento individual, definiram um conjunto de tradições que atuariam normativamente, impondo restrições e padrões de orientação ao indivíduo, padrões socialmente validados, pelos quais os migrantes poderiam interagir com os membros de sua comunidade. Em outras palavras, os artistas buscaram em suas identidades individuais semelhanças e características, o que foi relativamente facilitado pela proximidade geográfica de suas terras natais(01).

No entanto, a unificação do discurso identitário sertanejo resultou de um ato criativo e deliberado, e não apenas de fatores regionais em comum. Gonzaga, Teixeira e Dantas integraram e ressignificaram elementos diversos de suas vivências locais, adaptando-os para dialogar com uma visão idealizada do sertão nordestino, que ultrapassava as especificidades de suas regiões de origem. Essa síntese cultural, portanto, não se limita a evidenciar a proximidade geográfica entre os sertões pernambucanos, como o Araripe, o Pajeú e o sertão Central do Ceará, mas revela a capacidade desses artistas de articular aspectos locais e transformá-los em símbolos de uma identidade regional mais ampla. Esse processo também incluiu uma mediação com a memória histórica, ampliando o impacto da cultura nordestina por meio dos programas de rádio e da indústria fonográfica. 

A memória coletiva, não é estática, mas construída e reconstruída ao longo do tempo em interações sociais. Assim, a obra de Gonzaga, Humberto e Dantas serviu não apenas para narrar, mas para solidificar e perpetuar a identidade cultural nordestina em um contexto nacional, demonstrando a capacidade da arte de interligar memórias e fortalecer representatividades. Segundo a historiadora Jurema Mascarenhas (2009), eles codificaram a poesia rural do sertão nordestino, adaptando-a a uma linguagem acessível e direta. Essa abordagem possibilitou que suas canções atuassem em três níveis: no domínio do discurso, que se refere ao que está acontecendo, ou seja, à natureza da ação social retratada; nas relações do discurso, que dizem respeito à interação entre os participantes envolvidos no contexto comunicativo; e no modo do discurso, que se relaciona às funções específicas determinadas pela língua em relação à situação observada.

O texto revisitou a experiência de um povo pobre, buscando afirmar o que consideravam “uma cultura marginalizada”. Mais do que reproduzir a visão tradicional camponesa, contribuiu para que essa cultura se atualizasse e se reafirmasse em outro nível. Longe de ser uma visão restrita ao passado, trata-se de uma visão presente, de um grupo social e regional marginalizado, que resiste à destruição completa de seus territórios tradicionais. Contudo, para isso, precisa construir novos territórios que, imaginariamente, dão continuidade aos anteriores. Mais do que um fenômeno de resistência, o movimento artístico e cultural Forró, por meio de suas músicas, participou da atualização de todo o arquivo cultural do migrante diante das novas condições sociais enfrentadas nas grandes cidades (Gruzinski, 2001, p. 61). O Nordeste de Gonzaga, Humberto e Dantas foi criado para alimentar a memória do migrante nordestino.

No sentido discursivo, o Forró emergiu como linguagem estética, configurando-se como uma forma situada no "entre-lugar" campo-cidade, enredada em estratégias de sobrevivência de milhares de migrantes. Portanto, mesmo permeada de saudade, permanências e resistências às mudanças, essa linguagem foi móvel e mutável, pois se constituiu na vivência, entre concessões e atritos, transformando-se conforme a lógica fluida, não linear, da mestiçagem. O Forró é fértil em relações de negociação e conflito, permeado por atritos e fluidez, características de sua existência e da vida cotidiana cheia de contradições. Assim, chamou atenção para os problemas, as tradições, as possibilidades, as referências e as visões de mundo do povo nordestino.

Função(02)– Primeiramente, o discurso descreveu o objetivo, que era abordar os valores do povo nordestino, como o amor à terra, a fé e a devoção, a resistência do sertanejo, a ligação com a família e os costumes morais. Secundariamente, tratou da migração do nordestino, do sentimento de saudade da terra de origem e da família que permaneceu no Nordeste, além de destacar as diferenças entre a vida na região urbana e a do interior. O argumento(03)– Como peça secundária da função, foi direcionado ao povo nordestino, utilizando uma expressão musical que estimulasse sua autoestima, seu valor cultural e projetasse, perante a sociedade brasileira, sua verdadeira imagem. Estrutura(04)– A forma utilizada foi o cancioneiro popular tradicional, com duas técnicas específicas: o estilo declamatório(05) de cantar e a estrutura simétrica(06) de frases articuladas. Ou seja, as canções foram urbanizadas, mantendo uma estrutura em estrofes, característica comum aos desafios dos cantadores nordestinos. 

A análise desenvolvida ao longo deste capítulo destacou como a música e a cultura nordestinas foram transformadas em ferramentas de construção identitária por meio do trabalho de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas. A partir de um discurso deliberadamente unificado, esses artistas não apenas representaram suas vivências individuais e regionais, mas também integraram elementos de memória coletiva, criando um retrato idealizado do sertão que dialogava com o contexto nacional. Essa síntese foi fundamental para o sertanejo poder se reconhecer nas narrativas culturais e, ao mesmo tempo, para que o restante do Brasil fosse sensibilizado quanto à riqueza e complexidade da cultura nordestina. A contribuição de Gonzaga e seus parceiros foi decisiva no processo de ressignificação de símbolos culturais do sertão. Por meio de suas composições, elementos como lembranças de um amor, alegria, tristeza, namoro, paixão, frustração, vida conjugal; além da maior festa religiosa nordestina (em homenagem a São João), também foram abordados outros santos católicos, como São Pedro, Nossa Senhora Aparecida, entre outros. 

Os textos produzidos para as canções descrevem as características dessas festividades: rituais típicos, gastronomia, vestimentas, adereços, objetos regionais, agricultura, fauna e flora, transformando-os em representações amplas, capazes de se perpetuar na memória coletiva nacional. Essas narrativas musicais, ao mesmo tempo, em que remetiam ao passado, serviam para reconfigurar e atualizar a cultura sertaneja em novos contextos, como o das grandes cidades para onde migraram milhões de nordestinos. Concluindo, o capítulo explorou como os artistas usaram a memória autobiográfica de suas vivências no sertão e a transformaram em uma memória histórica compartilhada. As canções tornaram-se elementos catalisadores dessa construção identitária, resgatando e estabilizando imagens e tradições do povo nordestino. Além disso, ao adaptar a poesia rural e os valores sertanejos a uma linguagem acessível, os compositores facilitaram o diálogo entre o sertão e a modernidade, utilizando meios como o rádio e a indústria fonográfica para ampliar o alcance de sua mensagem.

No entanto, o processo de unificação do discurso identitário sertanejo foi muito mais do que uma simples celebração de tradições locais. Ele também envolveu mediações criativas, negociações culturais e adaptações às novas condições sociais enfrentadas pelos migrantes nordestinos. Como pontuado, a linguagem estética do Forró configurou-se em um “entre-lugar” campo-cidade, permeada por contradições, concessões e transformações. Essa fluidez foi essencial para o movimento artístico poder representar a vivência dinâmica e multifacetada dos nordestinos nas cidades, marcadas pela saudade, pela resistência e pelas estratégias de sobrevivência. Ao mesmo tempo, o movimento artístico e cultural do Forró cumpriu um papel fundamental no fortalecimento da autoestima do povo nordestino. As músicas foram elaboradas para destacar valores e referências que reafirmassem a identidade sertaneja e projetassem uma imagem positiva do Nordeste para todo o Brasil. 

O uso de estruturas poéticas tradicionais, como o estilo declamatório e as estrofes simétricas, conectava o cancioneiro popular rural às demandas e estéticas da modernidade urbana. Assim, a obra desses artistas conseguiu preservar o valor cultural das tradições nordestinas enquanto dialogava com os desafios contemporâneos. Por fim, a análise apresentada demonstra que o discurso identitário construído por Gonzaga, Teixeira e Dantas não foi apenas um produto de sua geografia de origem, mas também uma elaboração criativa e política que buscava responder às condições históricas e sociais do período. Esse movimento transformou o Forró em um espaço fértil de negociação cultural, resistência e reinvenção, consolidando-se como uma das principais expressões da memória coletiva nordestina e brasileira. O Forró, portanto, emerge não apenas como uma manifestação cultural, mas como um poderoso discurso de identidade, resistência e pertencimento que continua a reverberar nas narrativas contemporâneas.

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1. Gonzaga era do município de Exu pertencente ao sertão do Araripe em Pernambuco, Humberto era da cidade de Iguatu referente ao sertão Central do Ceará e Zé Dantas era da cidade de Carnaíba, que faz parte do sertão do Pajeú no interior de Pernambuco.
2. É uma intenção para a realização de algo derradeiro, seja no propósito de prelúdio na natureza animada, inanimada ou na consciência coletiva, por meio de dança, ritual dentre outros. 
3. Geográfica, cronológica, etnográfica dentre outros.
4. Linear, segmentada, repetitiva entre outros.
5. É a forma de cantar, uma melodia inteiramente submetida ao ritmo das palavras, uma característica peculiar dos versos populares presentes em manifestações como o aboio, o repente, o coco e a literatura de cordel, entre outras, na região sertaneja do Nordeste.
6. São frases articuladas nas canções com estrutura em estrofes (sendo uma característica muito comum aos desafios dos cantadores nordestinos). 


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