INTRODUÇÃO

Este blog foi criado com base no relatório técnico apresentado como Trabalho de Conclusão do Mestrado Profissional em História do Sr. Salatiel D’Camarão, na Universidade Católica de Pernambuco, sob a orientação da Profa. Dra. Maria do Rosário da Silva. O principal objetivo deste espaço é analisar a construção de uma cultura urbanizada a partir da adaptação da cultura popular sertaneja nordestina brasileira aos padrões e gostos urbanos. 

Esse processo envolve a ressignificação de suas tradições e a massificação cultural, influenciada diretamente pela indústria fonográfica no Brasil, no período compreendido entre 1947 e 1966. Conforme argumenta o antropólogo e cientista social argentino Néstor García Canclini (1999, p. 163), a identidade de uma nação, grupo social ou movimento é uma narrativa histórica, construída por meio de instrumentos como livros escolares, museus, rituais cívicos e discursos políticos. 

Em outras palavras, a identidade não emerge de forma espontânea, mas é elaborada e moldada ao longo do tempo. Assim, este blog busca examinar a elaboração de um discurso sobre a identidade sertaneja nordestina brasileira por meio do movimento artístico e cultural denominado Forró(1) “Pé de Serra(2)”. A abordagem adotada visa compreender as dinâmicas que possibilitaram a inserção da cultura popular sertaneja em um novo contexto sociocultural, preservando sua essência, ao mesmo tempo em que dialoga com as demandas e estéticas urbanas. 

Dessa forma, a partir de análises bibliográficas e pesquisas de campo realizadas junto à comunidade pertencente ao movimento, defende-se o argumento de que as parcerias de Luiz Gonzaga com Humberto Teixeira e, posteriormente, com Zé Dantas foram amplamente reconhecidas como o marco inicial da criação do movimento artístico e cultural denominado Forró.

A produção musicográfica resultante dessas colaborações contabiliza um total de 55 canções, sendo 19 oriundas da parceria entre Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, e 36 da colaboração entre Zé Dantas e Luiz Gonzaga. Em suma, Dantas, Teixeira e Gonzaga desempenharam um papel fundamental na codificação das matrizes sertanejas nordestinas, promovendo sua gradual urbanização em conformidade com os padrões e os gostos das cidades. Esse processo foi amplamente orientado pelos moldes estabelecidos pela indústria fonográfica no Brasil.
 
Assim, a cultura camponesa sertaneja nordestina, juntamente com seu conceito de “tradição(3)”, foi reformulada e industrializada, adaptando-se às demandas de um mercado cultural em constante transformação(4). As canções surgiram com o propósito de conquistar o crescente público migrante nordestino que se locomoveu para o Rio de Janeiro e São Paulo, durante o processo de construção, urbanização e industrialização das cidades, isto é, emergiu um novo nicho a ser explorado pelo mercado fonográfico.

Segundo a historiadora baiana, Jurema Mascarenhas Paes (2009), esses migrantes, desempenharam papéis importantes na dinâmica de construção das estruturas e engrenagens sociais da cidade, assim como nos contrastes sociais, econômicos e culturais, estavam constantemente presentes, negociando espaços, poderes e conhecimentos(5). Através desse entendimento, Gonzaga, Teixeira e Dantas, inspirados na cultura popular sertaneja nordestina por meio de elementos do cotidiano no campo, codificaram uma criação musical sem precedentes na história da música popular brasileira. 

Seu objetivo era despertar no público camponês migrante da região demográfica citada, um engajamento, atraindo essa plateia para consumir um novo produto artístico. Dessa forma, esses compositores e letristas renovaram, transformaram e modernizaram a música "nordestina", amplificando-a através da rádio e expandindo seu campo de memória por meio do Forró. É importante destacar que o historiador paraibano Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2001) justificou que a “elaboração” desta identidade sertaneja nordestina brasileira não aconteceu de uma forma ordenada.

Ela ocorreu dentro de um processo fragmentário que só se tornou coesa através do ideário regionalista “confeccionado” no Nordeste(6) nas primeiras décadas do século XX. Segundo Albuquerque Júnior, para que ela se constituísse numa unidade imagética e discursiva, foi necessário que antes inúmeras práticas e discursos “nordestinizantes” surgissem de maneira dispersa, para serem reunidos num momento subsequente.

Continuamente Albuquerque Júnior (2001) afirma que esse entendimento foi resultado de uma “costura” de discursos e imagens, influenciada pelas circunstâncias históricas e econômicas do país. Através desses fatos, compreendemos que a construção de uma identidade sertaneja nordestina proposta nas canções elaboradas para o gênero e subgêneros musicais, reconhecidos como pertencentes ao Patrimônio Imaterial Brasileiro (Sandroni, 2021), denominado de Forró, percorre caminhos por paisagens distintas das quais originam pesquisas e trabalhos acadêmicos de grande relevância. 

Esses esforços visam oferecer ao público um entendimento detalhado sobre o conceito de Forró, com o propósito de reforçar sua importância cultural. No entanto, há uma lacuna na narrativa da história da cultura brasileira, pois não existe uma historicização que explique como ocorreu o processo de criação e quais elementos foram consolidados para formar uma identidade sertaneja nordestina brasileira por meio de canções relacionadas aos subgêneros musicais associados ao estilo Forró “Pé de Serra” no mercado fonográfico.

Justifica-se, portanto, a relevância de uma análise histórica que esclareça a hipótese de que foi a indústria fonográfica a responsável por adotar uma categorização para uma manifestação cultural específica, denominada Forró. Este conceito deve ser entendido em sua plenitude, considerando o significado atribuído pelos contextos socioculturais, históricos, econômicos e, sobretudo, políticos.

Ilustraremos como Gonzaga trouxe das memórias da cultura popular sertaneja nordestina através da intuição sensível uma abdução(7) dos elementos sonoros(8) que codificados constituíram uma identificação sensorial, dentro de uma lógica de cadencias de caráter modal(9) e uma percepção rítmica(10) distinta, absorvida pela sua vivência nas festas comunitárias e nas diversas celebrações profanas e religiosas em sua terra natal (Exu-PE), tanto como ouvinte como músico. 

Luiz Gonzaga carregava em sua memória melodias características do sertão nordestino, adquiridas por meio dos cancioneiros populares(11) que ouviu durante sua infância e que executou ainda adolescente como sanfoneiro na região. Esse repertório foi posteriormente adaptado aos moldes das estruturas musicais teóricas ocidentais(12), consideradas pelo mercado fonográfico como mais adequadas à indústria cultural da época.

Assim, Gonzaga realizou uma síntese única, unindo as sonoridades modais que marcaram sua juventude às referências tonais que assimilou ao longo de sua trajetória profissional. Esse processo foi amplamente influenciado pela atuação de Luiz Gonzaga no bairro do Mangue, no Rio de Janeiro, um dos principais redutos do meretrício carioca. Nesse ambiente, ele trânsitou em diversos bordéis, onde expandiu suas experiências musicais e começou a moldar a identidade sonora que marcaria sua obra. 

Além disso, sua trajetória foi fortemente impactada por seu cotidiano como instrumentista na gravadora RCA Victor a partir de 1941, onde teve contato direto com grandes maestros e músicos virtuosos, bem como por sua atuação nas rádios(17), espaços que proporcionaram intercâmbios artísticos e o aperfeiçoamento de sua técnica e repertório. 

Do mesmo modo, esclareceremos como Humberto Teixeira e Zé Dantas acarretaram por meios simbólicos os elementos constituídos nas letras, instigando a memória destes migrantes por meio de lembranças das relações no campo, e o sentimento de saudade, fazendo uma conexão entre o passado e o momento de êxodo das populações rurais para os centros urbanos.

Devo destacar, que o conceito de identidade sertaneja nordestina brasileira pregado no início do movimento foi ressignificado por uma nova geração de artistas, que defende o Forró como uma condensação da identidade camponesa brasileira. Esta interpretação do movimento enaltece um sentimento de valorização das origens rurais brasileiras. Esse conceito foi divulgado nas megalópoles europeias e, hoje, este movimento artístico e cultural brasileiro é cultivado em vários países de diferentes regiões geográficas e culturais, como Estados Unidos, China, Alemanha, França, entre outros.

Concluindo, para entender a magnitude do tema que abordaremos, precisamos tratar de conceitos lineares e generalidades de fatos históricos que nos permitem ter uma visão mais ampla do pressuposto. 


O trabalho deste blog é fomentando por apoio coletivo, sendo assim, se você gostou desta literatura e tem o interesse de ajudar o blog a continuar ofertando conteúdos de pesquisas relacionados ao patrimônio imaterial brasileiro, intitulado de Forró de Raiz ou Pé de Serra. Poderá doar um valor simbólico através do pix: salatieldias@hotmail.com, além de deixar seu comentário, inscrever-se, compartilhar e dar um like. 

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1- A partir de incursões bibliográficas e pesquisa de campo, compreendemos que o termo "forró" é uma categorização da indústria cultural que abrange tanto um gênero musical quanto seus subgêneros, além das danças associadas a cada um desses subgêneros. 
2- Com base em análises bibliográficas e pesquisas de campo, compreende-se que o termo "pé de serra" foi uma categorização difundida por Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Jackson do Pandeiro e Pedro Sertanejo. Inspirados pelos moldes da indústria cultural, eles utilizaram essa denominação para identificar um estilo musical e de dança que, segundo eles, representava a essência mais pura do interior do sertão nordestino brasileiro.
3- A partir de pesquisas bibliográficas, compreendemos que o termo “tradição” se refere a um conjunto de costumes, comportamentos, memórias, crenças e lendas compartilhados entre os membros de uma comunidade. Destaca-se que essa linguagem estabelece um vínculo profundo entre o doador e os receptores, tornando-se parte essencial da identidade e da cultura desse grupo social.
4- Eles moldaram signos rítmicos, melódicos, harmônicos, linguísticos, vocais e corpóreo-táteis no movimento dinâmico entre referências da cultura oral nordestina, referências urbanas e a referência nacional-popular estatal. Dessa forma, utilizaram elementos simbólicos nas letras, instigando o subconsciente dos migrantes através de lembranças das relações humanas no campo e do sentimento de saudade, criando uma conexão entre o passado e o momento de êxodo das populações rurais para os centros urbanos. Assim, compreendemos que os três personagens transformaram e modernizaram a música e canção "nordestina", codificando-a dentro de um processo de urbanização estabelecido pela indústria fonográfica e ampliado pela tecnologia do disco e do rádio.
5- Paes, 2009, p. 89.
6- Segundo o historiador Durval Muniz, em 1919, o termo Nordeste começou a ser empregado no discurso institucional para delimitar uma área que, sendo mais propensa às estiagens, passa a ter atenção especial da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS (Albuquerque Junior, 2009. p.67).
7- Significa buscar uma conclusão por meio da interpretação racional de sinais, indícios ou signos. Trata-se de uma espécie de intuição que não ocorre de forma instantânea, mas é realizada passo a passo até se alcançar um desfecho.
8- Refere-se à qualidade e à característica dos sons produzidos em um contexto musical, incluindo os timbres, as texturas, os ritmos, as harmonias e as melodias que compõem uma obra ou performance. Ela é o resultado da combinação de elementos sonoros que, juntos, criam uma identidade auditiva única e evocam emoções, sensações ou significados culturais em quem escuta. A sonoridade musical não se limita apenas à música em si, mas também está relacionada ao ambiente e às condições em que ela é criada e ouvida (Bolle, 2007).
9- O termo modal – significa uma construção de uma série de sons melódicos pré-definido (Tagg, 2012).
10- O termo percepção rítmica – é a capacidade de perceber as divisões como parte de uma linguagem musical (Schaffer, 1977).
11- O termo "cancioneiro popular" refere-se ao conjunto de canções tradicionais de uma determinada cultura ou comunidade, transmitidas geralmente de forma oral e que expressam aspectos da identidade, valores, práticas sociais, e memória coletiva desse grupo. Essas canções podem englobar diversos gêneros, como modinhas, toadas, cantigas de roda, acalantos, entre outros, e frequentemente abordam temas do cotidiano, histórias locais, celebrações e tradições culturais. O cancioneiro popular é um elemento essencial do patrimônio imaterial de um povo, conectando gerações por meio da música e da poesia (Cascudo, 2012).
12- Elas desempenharam um papel central na adaptação de repertórios populares às exigências de consumo em massa. Esse modelo privilegiava harmonias tonais e formas estruturadas que facilitavam a assimilação e comercialização das obras, influenciando significativamente a produção musical de artistas que buscavam visibilidade no cenário nacional. Luiz Gonzaga, por exemplo, incorporou essas estruturas em sua música, conciliando elementos das sonoridades modais nordestinas com padrões tonais ocidentais para atender às demandas do mercado fonográfico, sem perder a essência regional (Silva, 2005).
13- Em 1940, Gonzaga foi convidado pelo artista paraibano Zé do Norte para participar do programa A Hora Sertaneja, na Rádio Transmissora, no Rio de Janeiro. Em 1941, trabalhou na Rádio Clube do Brasil, no programa Alma do Sertão. Em 1943, afastou-se da Rádio Clube, fez uma temporada na Rádio Mayrink Veiga e, posteriormente, foi contratado por Fernando Lobo para trabalhar na Rádio Tamoio, por indicação do influente Almirante. Em 1945, foi contratado pela Rádio Nacional, onde deu continuidade ao seu programa Alma do Sertão (sucesso na emissora anterior), junto com o apresentador Renato Murce. Em 1946, Gonzaga tornou-se um dos artistas mais ouvidos na Rádio Nacional (Sá, 1978).

REFERÊNCIAS

Albuquerque Júnior, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes, 2°ed. - São Paulo: Cortez, 2009.
Bolle, Willi. A aurora do som: uma introdução ao estudo da música e da sonoridade. São Paulo: Edusp, 2007.
Canclini, Néstor, 1995 García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro (11ª ed.). São Paulo: Global Editora, 2012.
Paes, Jurema Mascarenhas. São Paulo em noite de festa: experiências culturais dos migrantes nordestinos (1940-1990). 2009. 305 f. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009.
Sá, Sinval. O sanfoneiro do Riacho da Brígida. Vida e andanças de Luiz Gonzaga. O rei do baião. 5°ed. Brasília: ThesaurusL, 1978.
Sandroni, Carlos (Org.). Dossiê sobre o Forró: por meio de Pesquisa de Instrução técnica para solicitação de registro de matrizes do Forró como Patrimônio Cultural Brasileiro. João Pessoa: Associação Respeita Januário, 2021.
Silva, Fabio Lopes. Indústria Cultural e Música Popular Brasileira: Conexões e Contradições. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 58, 2005.
Schaffer, Murray. The Tuning of the World. Toronto: McClelland & Stewart, 1977.
Tagg, Philip. Music’s Meanings: A Modern Musicology for Non-Musos. Huddersfield: The Mass Media Music Scholars’ Press, 2012.


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