FORMAÇÃO DE PLATEIA

 A urbanização das indústrias fonográficas e a disseminação dos rádios, abordadas no capítulo anterior, constituíram fatores determinantes para a popularização e consolidação de movimentos musicais no Brasil. Segundo Jurema Mascarenhas Paes (2009), essas transformações possibilitaram a ampliação do alcance de manifestações artísticas regionais, permitindo que tradições antes restritas ao contexto local atingissem um público muito mais amplo e diverso. Dentro desse cenário, o Forró emergiu como um movimento artístico e cultural singular, capaz de traduzir e projetar a perspectiva para além das fronteiras geográficas do Nordeste. Ao compreender a força e o alcance das indústrias culturais emergentes, Luiz Gonzaga desempenhou um papel central ao utilizar as plataformas emergentes para promover os valores, as narrativas e os costumes do povo sertanejo nordestino e criar uma conexão emocional entre o público urbano e a cultura nordestina. Mais do que um simples intérprete, Gonzaga se tornou um embaixador da cultura nordestina, consolidando, ao lado de Humberto Teixeira e Zé Dantas, um movimento artístico e cultural com uma estética sonora e poética que capturava fragmentos da vida no sertão. Albuquerque Junior (2009, p. 164) destaca que:

Gonzaga foi, pois, o artista que, por meio de suas canções, instituiu o Nordeste como um espaço da saudade. Embora não aquele Nordeste com saudade da escravidão, do engenho, das casas-grandes; mas o Nordeste da saudade do sertão, de sua terra, de seu lugar. Saudade de seus cheiros, seus ritmos, suas festas, suas alegrias, suas sensações corporais [...] Um Nordeste humilde, simples, resignado, fatalista, pedinte. E, ao mesmo tempo, um Nordeste de grande “personalidade cultural”. Um lugar que quer conquistar um lugar para sua cultura em nível nacional, que quer mostrar para o governo e para os do Sul que existe que tem valor, que é viável. O espaço da cultura brasileira contra as estrangeirices do Sul. 

Este capítulo se dedicará a explorar a difusão da construção da narrativa artística voltada para a formação da plateia do gênero musical que seria conhecido como Forró. Além disso, será analisado como os discursos musicais de Gonzaga, Zé Dantas e Humberto Teixeira foram determinantes para criar uma audiência que não apenas consumia, mas também se identificava com as mensagens propagadas por suas canções. Essa conexão, favorecida pelas temáticas abordadas, ilustra como o discurso artístico de Gonzaga ultrapassou barreiras geográficas e se tornou um elo entre o campo e a cidade, reafirmando a potência do rádio e da indústria fonográfica na construção de novas plateias e na legitimação de uma cultura antes marginalizada (Paes, 2009).

Em 1920, com a melhora econômica na Europa, houve uma parada brusca nas imigrações estrangeiras, pois, com a possibilidade de se estabelecer no próprio país de origem, as pessoas optaram por permanecer. Entretanto, o Sudeste do Brasil crescia, apresentando uma necessidade crescente de mão de obra para as lavouras de café. Nesse mesmo período, São Paulo passava por um intenso processo de crescimento, urbanização e industrialização, transformando-se em uma metrópole moderna. Assim, tornou-se imprescindível a implementação de uma política de subsídios que estimulasse o processo migratório interno da região Nordeste para a região Sudeste. A partir de 1930, a migração nordestina para o Estado de São Paulo passou a ser oficialmente incentivada. O trem e o navio marcaram o início dessas migrações entre as duas regiões. Naquela década, o Departamento de Imigração e Colonização registrou a entrada de 45.886 trabalhadores nacionais no estado de São Paulo. Armando Salles de Oliveira, governador de São Paulo na época, iniciou, em 1935, gestões e contratos com empresas particulares que começaram a atuar no norte de Minas Gerais e no Nordeste, agenciando e promovendo a migração de trabalhadores rurais para São Paulo (Paes, 2009).  

Essas empresas contavam maravilhas sobre a cidade de São Paulo e seu mercado de trabalho, cooptando os migrantes para a viagem (Bosco; Jordão, 1967. p. 146). Com a expectativa de receber salários e usufruir dos direitos trabalhistas recém-adquiridos, ausentes nas relações de trabalho na zona rural, muitos foram seduzidos pela esperança de uma vida melhor no Sudeste, pois a propaganda apresentava a região como moderna, em desenvolvimento e cheia de oportunidades. Jurema Mascarenhas Paes (2009) afirmou que, desse total, 38.090 pessoas utilizaram a ferrovia para seu deslocamento, enquanto 7.796 optaram pela via marítima. Nos anos de 1930 e 1940, os investimentos no setor imobiliário ganharam impulso, possibilitando novas edificações. Paes (2009) justificou que São Paulo tornou-se “a cidade de um edifício por hora”. Os lucros e capitais excedentes provenientes de diferentes atividades passaram a ser aplicados em investimentos imobiliários, com destaque para a construção civil. 

Em 1920, foram registradas 1.875 novas construções; em 1930, o número já havia crescido para 3.922; em 1940, atingiu 12.490; e, em 1950, chegou a 21.600. Na metade da década de 1950, o governo de Juscelino Kubitschek lançou um plano de metas que priorizava a produção de artigos industrializados no Brasil. Para isso, JK facilitou a entrada de multinacionais no país, visando promover investimentos internacionais, sobretudo no setor industrial. Desse modo, São Paulo passou a receber e concentrar o intenso processo de industrialização no contexto nacional. Com a abertura da estrada asfaltada Rio-Bahia e a melhoria de estradas secundárias, como a Transnordestina, que liga Salvador a Fortaleza (Bosco; Jordão, 1967. p. 146), os caminhões conhecidos como pau-de-arara tornaram-se o meio de transporte mais frequente a partir da década de 1950.

Os donos dos caminhões eram agenciadores dos trabalhadores nordestinos; muitos chegaram a trabalhar diretamente para fazendeiros, industriais ou agências especializadas em São Paulo (Paes, 2009). Esses veículos, adaptados para o transporte rudimentar de passageiros, foram amplamente utilizados durante o êxodo rural de nordestinos para o Sudeste do país, especialmente para o estado de São Paulo. O transporte de passageiros em caminhões passou a ser proibido, na década de 1960, desaparecendo, por fim, entre as décadas de 60 e 70, quando começou a concorrência das companhias de ônibus (Paes, p. 51). A partir dessa década, os migrantes passaram a se estabelecer diretamente nas regiões periféricas, habitando, em sua maioria, áreas que abrigavam bairros industriais e de imigrantes, como o Bexiga e o Brás, além dos municípios da região metropolitana do ABC (Santo André, São Bernardo e São Caetano) e da região de Osasco, a oeste. 

Essas áreas, localizadas ao longo dos mesmos eixos ferroviários, já haviam participado do primeiro surto industrial, registrado na década de 1920. No início da década de 1950, São Paulo registrava uma população de cerca de 2,2 milhões de habitantes, entre os quais mais de 500 mil mineiros e 400 mil nordestinos, sendo aproximadamente 190 mil baianos, 63 mil pernambucanos, 57 mil alagoanos e 30 mil cearenses. Esse contingente correspondia a quase metade da população paulistana, composta, em sua maioria, por descendentes de imigrantes italianos e afrodescendentes filhos de ex-escravizados (Rocha, 2002. p.183). Com base nessa estatística, constata-se que, nesse período, existia, no Sudeste do país, uma nova segmentação de mercado: os migrantes nordestinos, que se constituíam como público consumidor importante na dinâmica de construção das estruturas e engrenagens sociais de São Paulo, assim como dos contrastes sociais, econômicos e culturais. 

Faziam-se presentes nas missas, nos estádios e nas torcidas de futebol, nos sindicatos, nos botecos e nos centros comunitários, sempre negociando espaços, poderes e saberes. Ou seja, existia um público-alvo novo a ser explorado: uma multidão sem representatividade no mercado, sem rosto e sem voz (Paes, 2009, p. 89). Todavia, surgiu, no final da década de 1940, um discurso produtivo e tradicionalista plural do Nordeste, em formato de pronunciamentos inspirados no regionalismo promovido por Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Zé Dantas. Esses artistas, em diálogo, concluíram que a cultura popular representava o inventário do inconsciente regional, uma espécie de estrutura ancestral que permitia compreender um possível fundamento da cultura nordestina.

Em suma, por meio desse entendimento, apostaram que o público-alvo enxergava a cultura popular como um espaço de produção da memória. Assim, começaram a estabelecer discursos reminiscentes por meio de textos informativos, construindo um processo de afirmação de uma identidade local, baseado na continuidade e na “tradição”. Foi propagada uma visão mitológica do campo, apresentado como um paradigma de pureza, paz e simplicidade. Simultaneamente, construiu-se uma perspectiva idílica para a cidade, criando um equilíbrio entre essas duas representações culturais (Santos, 2004, p. 22). Jurema Mascarenhas Paes (2009) declarou que eles buscavam elementos que trouxessem, do subconsciente desses migrantes, lembranças das relações humanas no campo e o sentimento de saudade. Esse objetivo era alcançado por meio de um sotaque demográfico sertanejo nordestino e de componentes sonoros que, codificados, constituíam uma identificação sensorial.

Além disso, os subsídios simbólicos presentes nas letras instigavam a memória dos migrantes, promovendo uma conexão entre o passado e o momento do êxodo das populações rurais para os centros urbanos. Em suma, sobre a batuta de Gonzaga junto com a parceria de Humberto e Zé Dantas, uma criação musical sem precedentes nasceu na história da música popular brasileira; eles amplificaram a música “nordestina” por meio da rádio e ampliaram o seu campo de memória. Destaco o depoimento de Gonzaga sobre o público-alvo do nicho em São Paulo:

A colônia nordestina não só se divertia. Agente notava que ouvir o baião para eles era lenitivo para saudade da terra distante. E eu os imitava no linguajar, riam, colaboravam nos programas. [...] os programas ficavam repletos de nordestinos. Deles havia quem viajavam um dia inteiro de trem Sorocabana, Noroeste ou Alta Paulista - só para me ver tocar e dizer aquelas lorotas, para escutarem a música que falava da terra distante e perdida, sem embargo encravada no coração (Sá, 1986, p. 55).

Na década de 1950, Luiz Gonzaga não apenas consolidou sua posição como um dos maiores expoentes da música brasileira, mas também desempenhou papel fundamental na construção e na difusão de uma identidade sertaneja nordestina brasileira no cenário nacional. Em um Brasil marcado por profundas desigualdades regionais, Gonzaga utilizou a música e as ondas do rádio para criar uma ponte simbólica entre o Nordeste e os migrantes que viviam nas grandes cidades, especialmente em São Paulo, que ele próprio chamou de “QG do Baião”. Essa definição não foi apenas uma metáfora, mas também um reconhecimento da cidade como ponto estratégico para a difusão cultural e para a criação de um espaço de pertencimento para os milhares de migrantes nordestinos que ali se estabeleceram. Nesse sentido, vale conferir, a seguir, a leitura de Gonzaga sobre a cidade de São Paulo:

Instalei o QG do Baião em São Paulo, onde a coisa ia bem, a colônia nordestina vibrando e dando apoio ao Baião. O ponto fixo era a Rádio Record, em contrato permanente. E, de lambuja, os contratos extraordinários para as cidades do interior e para os subúrbios distantes da Paulicéia. O dinheiro ia correndo. Tanto no Rio como em São Paulo, entre as quase eu ficava no vai e vem danado. Nacional no Rio, Record em São Paulo (Sá, 1986, p. 55).

Nesse contexto, a Rádio Record desempenhou papel fundamental, não apenas como veículo de transmissão das músicas de Luiz Gonzaga, mas também como espaço de articulação de narrativas que conectavam o Nordeste a uma identidade cultural compartilhada e revalorizada. Em 1951, Humberto Teixeira, Zé Dantas e o apresentador Paulo Roberto, com a participação especial de Luiz Gonzaga, produziram um programa que se tornou uma referência de “tradição” camponesa nordestina (aos olhos do público fiel de Gonzaga e, consequentemente, da indústria cultural), bem como das músicas desses mestres do cancioneiro popular brasileiro. Esse programa tornou-se reconhecido pelo público-alvo como um modelo de referência da representatividade do discurso de identidade proposto pelos cofundadores do movimento artístico e cultural. Chamado No Mundo do Baião, o programa era transmitido no horário nobre da Rádio Nacional, todas as terças-feiras, às 21h, com patrocínio dos produtos Royal. Ele teve duração de um ano (Alves, 2010, p. 18).

Um discurso de identidade nordestina foi difundido pelo programa por meio das descrições presentes nas canções de Humberto Teixeira, Zé Dantas e Luiz Gonzaga. As músicas apresentavam, nas inflexões vocais de Gonzaga, um timbre peculiar de um caboclo sertanejo. Além disso, os trejeitos de personagens típicos interpretados por Zé Dantas carregavam um sotaque repleto de expressões do português arcaico, específico da zona rural do sertão nordestino brasileiro, em consonância com as formas de teatralizar e se comunicar tanto de Gonzaga quanto do próprio Zé Dantas. Humberto, Zé e Gonzaga ofereciam aos espectadores narrativas sobre a cultura do camponês sertanejo nordestino. Esse discurso foi gestado a partir da memória individual deles, elaborada por meio de experiências marcantes no território da sensibilidade. Essas vivências foram condensadas em uma descrição de uma identidade coletiva, que não se limitava a lembranças, mas também envolvia gestos e hábitos que se repetiam e se renovavam.

O programa No Mundo do Baião ressignificou a forma de apresentar uma programação voltada ao cancioneiro popular nordestino, estabelecendo uma linguagem distinta com um sotaque específico, inspirado na cultura oral, nos seus causos e contos. O sucesso do processo de urbanização da cultura popular nordestina, impulsionado por programas de rádio e pela difusão do cancioneiro popular, abriu espaço para o surgimento de novos coautores. Esses artistas e intérpretes, inspirados pela riqueza das tradições culturais do sertão, contribuíram significativamente para a consolidação de um movimento artístico e cultural que, mais tarde, seria chamado de Forró. Um exemplo notável é a dupla Jackson do Pandeiro e Almira Castilho, que participou de diversos programas na década de 1950. Aos domingos, na Rádio Tupi, eles integravam dois programas: o primeiro, chamado Matinê Tupi, era conduzido por Airton Perlingeiro; o segundo, Caleidoscópio, tinha apresentação de Carlos Frias.

Às segundas-feiras pela manhã, a dupla participava de um dos programas de auditório mais concorridos da emissora, o Dia de Festa, com Silveira Lima. Já às terças-feiras, o compromisso era com a televisão, na Festa do Arraial Televendas, onde davam seus primeiros passos na nova mídia ao lado do popular apresentador Abelardo “Chacrinha” Barbosa, ainda sem os característicos adereços pré-tropicalistas. A dupla definiu a quarta-feira como o dia da semana para descansar. Depois, seguiam para São Paulo, alternando os horários entre a rádio e as aparições nas emissoras da Record paulista, a B-9 e o Canal 7. A dupla iniciou na televisão paulista com um contrato provisório, chegando até ficar um período com suas aparições suspensas, contudo, terminaram sendo contratados por um ano. Já o programa “No Forró do Jackson” teve seu contrato renovado por dois anos (Moura; Vicente, 2001, p. 215).

Em 1955, começaram um programa televisivo semanal, de meia hora de duração, às 20h15 das sextas-feiras. O nome do programa era No Forró do Jackson, dirigido por Mário Provenzano. Devido ao seu sucesso, o programa foi transferido para os domingos, após o Clube do Gurie e o Vesperal Trol, por volta da uma da tarde, sob o patrocínio da cerveja Black Prince e do Guaraná Princesa (Moura; Vicente, 2001, p. 215). Jackson começou a usar o termo “forró ” para denominar aquele tipo de festa realizada no programa, onde eram executados gêneros e subgêneros musicais de origem nordestina. Essa ação de Jackson foi um passo importante para o uso do termo “forró” como gênero artístico pelo mercado fonográfico, que passaria a abrigar os diversos subgêneros existentes na época. Destaco que Jackson e Almira se tornaram pop stars através da nova mídia, pois, devido ao carisma propiciado ao público, seduziram uma variedade de telespectadores.

Friso que o discurso do Forró como movimento artístico e cultural não passava despercebido aos analistas, começa-se a perceber uma reverberação dos discursos desses cofundadores do movimento em análise, refletida nos textos dos jornalistas que se baseiam nas falas desses protagonistas para produzir conteúdo em jornais, revistas, capas de discos, entre outros, como observamos no Jornal das Moças (1955, p. 14-15):

Jackson do Pandeiro e Almira estão formidáveis. Em alguns minutos de forró eles oferecem ao trabalhador coisa diferente para alegrar o espírito da gente da cidade grande, que finge não dar valor a essas canções simples porém encantadoras. É pena que no programa falte um pouco de coristas para tornar mais autêntica a noite de forró. Em todo caso, a música que Jackson vai apresentando agrada e nos obriga a comparecer às suas festinhas roceiras.

Contudo, na década de 1960, a música nordestina perdeu seu território na cena nacional, mas permaneceu no interior nordestino e nas periferias dos centros urbanos do Sudeste, como Rio de Janeiro e São Paulo, locais de grande concentração da população de migrantes nordestinos. Sendo assim, a Rádio Nacional, por exemplo, manteve programas apresentados dentro deste modelo confeccionado por Humberto, Zé Dantas, Gonzaga e a dupla Jackson do Pandeiro e Almira Castilho, que eram transmitidos em ondas curtas, permitindo assim que fossem ouvidos em todo o Nordeste. Não poderia deixar de citar outro personagem relevante para a propagação desse discurso constituído por aqueles que criaram esse movimento artístico e cultural, denominado Forró: o radialista, produtor cultural, sanfoneiro e compositor Pedro Sertanejo. Na década de 1960, na Rádio ABC, Pedro Sertanejo apresentou o programa Música e Alegria durante 16 anos. A partir de 1963, na Rádio Clube de Santo André, apresentou o programa Coração do Norte, que durou 15 anos.

Por volta de 1964, Pedro fundou o selo Cantagalo, dirigindo a gravadora ao longo de toda a década de 1960. Outra iniciativa criada por Pedro, em 1966, foi uma casa de apresentações artísticas e musicais chamada Forró do Pedro, situada na Rua Catumbi, número 183, no bairro do Brás, em São Paulo. O sucesso dessa casa de forró foi tão grande que inspirou a abertura de várias outras casas do gênero na cidade (Paes, 2009, p. 144 a 145).

Em 1966, Ainda neste ano, as gravadoras decidiram que não seria mais obrigatória a identificação do gênero musical nos rótulos e nas capas dos Long Plays (Dreyfus, 1996, p. 325), permanecendo apenas como informativo o nome da obra, seus compositores e letristas. Esse acontecimento gerou a necessidade de uma nova categorização na década de 1970, devido ao surgimento de diversos subgêneros no mercado musical (Frith, 1996).

Conforme destacado por Marcos Napolitano em A síncope das ideias, (2007), essa dinâmica evidencia como a indústria cultural molda estrategicamente os hábitos de consumo, ajustando-se às demandas do mercado e, ao mesmo tempo, procurando respeitar e preservar as identidades regionais que essas produções representam. Assim, para os consumidores continuarem encontrando os produtos (artistas) de sua preferência com facilidade, surgiu a necessidade de uma nova categorização no início da década de 1970. Segundo o musicólogo alemão Hans Lenneberg (1994), o termo gênero musical, empregado na musicologia para definir as categorias que contêm peças musicais que compartilham elementos em comum (Moore, 2001, p. 432–442), começou a ser usado pela indústria fonográfica com um significado simbólico. Surgiu, assim, a expressão “gênero guarda-chuva”, que representa uma estrutura que unifica diferentes elementos sob uma mesma cobertura. Isto é, o termo guarda-chuva é entendido como uma estrutura musical que abriga diversos subgêneros agrupados por um gênero principal, utilizado para rotular produtos de várias segmentações de mercado (Locke, 2015, p. 16).

Com o intuito de adaptar um novo costume ao público consumidor, passou-se a associar o gênero guarda-chuva a um “período musical”, já que anteriormente existia um cronograma da indústria cultural que dividia o mercado musical em períodos ao longo do ano. No Brasil, havia um cronograma distinto: no início do ano, o período carnavalesco; no meio do ano, o período junino; e, no final do ano, o período natalino. Também existiam períodos curtos de consumo, usados pela indústria cultural, como o Dia dos Namorados, o Dia das Mães, entre outros, que apresentavam um ciclo de consumo mais limitado. No encarte do LP São João no Brejo (Philips, 1964), que reúne artistas como Jackson do Pandeiro, Almira Castilho, Alventino Cavalcante, Zé Calixto e Borrachinha, é destacado o seguinte trecho:

A tradicional festa de São João, coloca-se na vanguarda dos melhores folguedos nacionais. Especialmente no norte e Nordeste, onde as condições de vida do homem, principalmente dos habitantes das cidades vizinhas do interior, fornecem as melhores situações e ambientes para tais comemorações. [...] O mês de junho é, como outro qualquer do ano, pleno de trabalho, como todos os meses. Quando chega o dia 23 de junho, véspera de São João, aí sim. Todo morador de arraial, fazenda ou vila, adquire uma consciência festiva. [...] A PHILIPS, todos os anos, comparece com seu LP, junino. Aqui está o deste ano.  [...] O Lp começa e termina como se estivessemos vivendo um baile de São João na Roça. Muitos vivas! Muitas piadas! E toda graça sertaneja, num dos seus maiores dias [...] O DIA DE SÃO JOÃO.

FIGURA 1: CAPA E CONTRACAPA DO LP SÃO JOÃO NO BREJO                                      Fonte: acervo particular do autor, 2025.


A produção fonográfica do LP São João no Brejo (Philips, 1964) evidencia a relação entre os chamados gêneros guarda-chuva e a categorização da música popular por períodos musicais. O disco, lançado anualmente pela gravadora Philips, é construído como uma experiência sonora imersiva, buscando reforçar a autenticidade das festividades juninas por meio de elementos musicais, visuais e discursivos. Na contracapa, o texto promocional destaca a ideia de que o LP proporciona uma ambientação fiel às festas de São João no meio rural. Esse discurso revela um processo de construção de uma identidade musical e cultural associada ao Nordeste, no qual expressões como “São João da roça” e “Forró Pé de Serra” são utilizadas como sinônimos da tradição nordestina. A justificativa da gravadora para o projeto do LP não apenas reforça essa identidade, mas também demonstra como a indústria fonográfica se apropriava das representações culturais para moldar o consumo da música regional.


Além do conteúdo musical, a capa do disco utiliza recursos visuais que reforçam estereótipos sobre o Nordeste, retratando personagens caricaturados do campo. Esse aspecto evidencia a construção de uma imagem folclorizada das festividades juninas e dos seus protagonistas, muitas vezes reduzindo a complexidade da cultura nordestina a uma representação idealizada e simplificada para o mercado. Outro ponto relevante é a afirmação de que a festa de São João se coloca na “vanguarda dos melhores folguedos nacionais”, especialmente no Norte e Nordeste, onde as condições de vida dos habitantes do interior seriam mais propícias para tais celebrações. Essa narrativa sugere uma visão romantizada da festividade, destacando a espontaneidade e a alegria do povo sertanejo, mas, ao mesmo tempo, pode ocultar as tensões sociais e econômicas vividas pela população rural.


Dessa forma, o LP São João no Brejo não apenas apresenta um repertório junino, mas também se insere em um contexto mais amplo de produção e consumo da música nordestina. Ele exemplifica como a indústria fonográfica, ao categorizar músicas por períodos festivos, contribuiu para consolidar determinadas tradições e reforçar construções identitárias, que, por vezes, podem ser questionadas em sua veracidade e intencionalidade. Em suma, o termo forró consolidou-se como referência nos discursos da indústria cultural por meio da mídia e do mercado fonográfico brasileiro, que o utilizou como um gênero guarda-chuva para identificar um segmento específico da música nordestina (Santos, 2013, p. 102). Ele tornou-se uma estrutura que abriga não apenas o subgênero que leva o mesmo nome, mas também outros subgêneros musicais que compartilham elementos estéticos, culturais e históricos. No contexto da música popular brasileira, esse processo de categorização teve um papel fundamental na forma como subgêneros musicais foram organizados e apresentados ao mercado. 

  FIGURA 3: GRÁFICO DO GÊNERO GUARDA-CHUVA FORRÓ                                     Fonte: Elaborado pelo autor, 2024.

             

Napolitano (2007) destaca que essa dinâmica não apenas reflete interesses econômicos, mas também estabelece narrativas culturais que conferem significado às expressões musicais, especialmente em um país marcado pela diversidade cultural, como o Brasil. Dessa forma, a categorização musical cumpre uma dupla função: facilita a comercialização dos produtos culturais, inserindo-os em circuitos de consumo massivo, e reafirma as tradições e identidades regionais que dialogam com o público local e global. Com o sucesso dos subgêneros musicais nordestinos urbanizados por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira no final da década de 1940 e, posteriormente, com a chegada de Zé Dantas, que completou o trio de sucesso na década de 1950, começaram a despontar, no cenário fonográfico, artistas que contribuíram diretamente para o movimento artístico e cultural que viria a ser conhecido como Forró. Entre os compositores, letristas, cantores e músicos que se destacaram nesse período, encontram-se nomes emblemáticos, como Jackson do Pandeiro, Almira Castilho, Luiz Bandeira, Pedro Sertanejo, Rosil Cavalcanti, Sivuca, Luiz Queiroga e Zé Calixto, entre outros, que deixaram uma marca significativa na construção e na popularização desse movimento cultural.

Diversos cantores da era do rádio aproveitaram o sucesso das músicas nordestinas e começaram a gravar canções de alguns subgêneros desse gênero guarda-chuva. Entre eles, destacaram-se Emilinha Borba, Sólon Sales e Dalva de Oliveira. Alguns desses artistas utilizaram o marketing da época para se promover, como Carmélia Alves, conhecida como a “Rainha do Baião”, e Luiz Vieira, denominado o “Príncipe do Baião”. Além disso, surgiram seguidores fiéis ao discurso dos fundadores do movimento, como Marinês, também reconhecida como a “Rainha do Baião”; Onildo Almeida; Abdias; José Marcolino; Anastácia, declarada “Rainha do Forró”; Antônio Barros; o Trio Nordestino (composto por Lindolfo Mendes Barbosa [Lindú], José Pedro Cerqueira [Cobrinha] e Evaldo dos Santos Lima [Coroné]); Dominguinhos; Genival Lacerda, nomeado “Senador do Rojão”; e Camarão, apenas para citar alguns dos mais conhecidos seguidores.

No final da década de 1970, inicia-se um processo de triagem entre os subgêneros musicais executados no gênero guarda-chuva Forró, levando compositores, letristas, músicos, cantores, entre outros, a serem cautelosas na escolha de seus repertórios. Isso porque havia um objetivo em comum: atingir a meta estabelecida pelas gravadoras. Ou seja, os artistas que não alcançassem a “cota” determinada seriam dispensados do elenco da instituição. Essa política de mercado contribuiu para o afunilamento das escolhas de subgêneros musicais. Enfim, ressalto que a formação de plateias para os subgêneros musicais nordestinos, especialmente no contexto do Forró, evidencia a complexa interseção entre cultura popular, mercado fonográfico e identidade regional. Movimentos migratórios de populações nordestinas, impulsionados por condições socioeconômicas adversas, desempenharam um papel fundamental na ampliação e diversificação do público consumidor. 

Paralelamente, a recategorização dos gêneros musicais pela indústria cultural, embora tenha simplificado e padronizado os produtos, garantiu a preservação de elementos que dialogavam com as identidades locais, reafirmando a relevância simbólica desses gêneros na construção de uma memória coletiva. Ao mesmo tempo, a associação dos gêneros guarda-chuva aos períodos festivos não apenas estruturavam a oferta cultural, mas também influenciavam os hábitos de consumo e a memória coletiva, criando um vínculo emocional entre o público e a música. No caso do Forró, sua forte associação às festas juninas consolidou seu papel como um elemento simbólico da cultura nordestina, ampliando sua visibilidade e alcance. Theodor Adorno (2002), em sua análise crítica sobre a indústria cultural, fornece reflexões relevantes para compreender esse processo. Para Adorno, a padronização e a mercantilização da cultura transformam os produtos culturais em mercadorias, ajustando-os às exigências do mercado e homogeneizando as experiências artísticas. 

No contexto do Forró, na década de 1970, a categorização desse gênero guarda-chuva passou por um processo de triagem, no qual foram incluídos, o Baião, o Xote, o Forró (subgênero homônimo), o Xaxado e a Marchinha, também conhecida como Arrasta-pé. Embora tenha facilitado o acesso do público aos produtos musicais, esse processo também moldou os hábitos de consumo e limitou a diversidade de expressões artísticas. Por outro lado, Napolitano (2007) ressalta que a indústria cultural, apesar de suas limitações, desempenhou um papel crucial na preservação e difusão da música nordestina. O historiador reconhece que o discurso de resistência e autenticidade presente nos gêneros guarda-chuva, como o Forró, muitas vezes coexistiu com as exigências mercadológicas, criando uma dinâmica ambígua, mas fértil, para a formação de plateias. Essa dualidade evidencia que, mesmo em meio à lógica da mercantilização, as identidades culturais regionais encontraram formas de se adaptar e se reinventar. 

Concluindo este capítulo, sob a lente de Adorno, é possível reconhecer os impactos da indústria cultural na padronização e comercialização desses produtos. Ainda assim, como Napolitano destaca, a música nordestina conseguiu preservar elementos de sua autenticidade, conectando-se às identidades regionais e ampliando seu alcance no cenário nacional. Essa trajetória reflete não apenas a capacidade de resistência da cultura popular, mas também sua habilidade em se reinventar diante das transformações impostas pela modernidade e pelo mercado.

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REFERÊNCIAS 

BIBLIOGRÁFICAS

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SANTOS, José Farias dos. Luiz Gonzaga: A música como expressão do Nordeste. São Paulo: IBRASA, 2004.

TESE

PAES, Jurema Mascarenhas. São Paulo em noite de festa: experiências culturais dos migrantes nordestinos (1940-1990). 2009. 305 f. Tese (Doutorado em História) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. 

PERIÓDICO

PANDEIRO, Jackson do. No Forró do Jackson.  Jornal das Moças, Rio de Janeiro, n. 2110, 24 nov. 1955, p. 14-15. Disponível em: https://bndigital.bn.br/acervo-digital/jornal-mocas/111031 Acesso em: 15 julho 2024.

FONOGRÁFICA

SÃO JOÃO no Brejo. Intérpretes: Zé Calixto; Alventino Cavalcante; Almira Castilho; Jackson do Pandeiro; Borrachinha. Rio de Janeiro: PHILIPS, 1964. 1 disco (45 min.): 33 1/3 rpm, microssulcos, mono. 12 pol. P 632700 L.

Figura 1 - RÓTULO DE IDENTIFICAÇÃO DA RCA VICTOR NOS DISCOS

IMAGENS

Figura 2 - CAPA E CONTRACAPA DO LP SÃO JOÃO NO BREJO 

Figura 3 – GRÁFICO DO GÊNERO GUARDA-CHUVA FORRÓ 

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